GROUNDING E CONTACTO – Dois Pólos do Processo Terapêutico

Dr. António Menezes Rocha

Psicólogo Clínico, CBT, Supervisor e Formador

E-mail: antonio.menezes.rocha@gmail.com

1-INTRODUÇÃO

Habituado como estava à Psicanálise, quando aderi à prática da Análise Bioenegética houve uma série de coisas que me surpreenderam. Surpreendeu-me, naturalmente, a importância do corpo no trabalho terapêutico, mas para além disso, surpreenderam-me sobremaneira os dois conceitos bioenegéticos de grounding e de contacto. A tal ponto continuaram a interessar-me que decidi aprofundar na sua compreensão. Hoje, a minha proposta vai no sentido de utilizar estes dois conceitos como marco de referência conceptual, pela força que considero terem, para muitas situações, ao longo do processo terapêutico.

O psicoterapeuta precisa de ter quadros de referência conceptuais, sem os quais todos os outros requisitos do seu perfil profissional são, não digo supérfluos, mas insuficientes para conduzir o processo terapêutico.

Os quadros conceptuais a que me refiro dimanariam de uma teoria ou de teorias baseadas em factos, hipóteses, afirmações, etc. que, idealmente, deveriam ser cientificamente comprovadas. Ora todos nós sabemos que a praxis psicoterapêutica é, muitas vezes, exercida com sérios défices a nível de suporte teórico, ou pior ainda sem qualquer suporte teórico, minimamente válido, e, simplesmente, apoiada em crenças, superstições ou mitos.

Com esta exposição pretendo, entre outras coisas, dar um pequeno contributo no sentido de fundamentarmos, o mais possível, a nossa prática clínica em pressupostos teóricos válidos e confiáveis. Estou consciente da difícil tarefa que proponho, mas não menos convencido da importância de nos mentalizarmos todos para a necessidade de reunirmos dados que dêem credibilidade, de carácter científico, ao trabalho que realizamos.

Fazemos parte da família das terapias de orientação psicanalítica, cujo suporte teórico deriva amplamente da Psicanálise freudiana, cuja sustentabilidade científica tem sido discutida, de forma bem acesa, nos últimos cinquenta anos. Muitos conceitos, teorias e hipóteses psicanalíticos foram confirmados cientificamente, outros foram refutados por falta de evidência objectiva. No entanto, as teorias de Freud continuam a ser revistas à luz dos mais recentes factos empíricos no sentido de se avaliar a sua relevância para a psicologia contemporânea (Fisher e Greenberg, 1996).

O facto de a Psicanálise ter sido foco de discussões apaixonadas, por parte de seguidores e detractores, em tão ampla escala, deve-se ao carácter pioneiro e revolucionário da abordagem, por Sigmund Freud, de temas tão importantes como a sexualidade, a estrutura do aparato mental, o inconsciente, a doença mental, ou as propostas de tratamento desta mesma doença mental.

A crítica a que a Psicanálise tem sido submetida é saudável e é um dos ingredientes do avanço do conhecimento. Espero, por isso, que também a Análise Bioenergética (A.B.) e a Orgonoterapia de Wilhelm Reich, a que aquela tanto deve, sejam escrutinadas nos palcos da discussão académica e da psicologia clínica, no sentido de se verificar o grau de refutabilidade das suas propostas e afirmações. “A refutabilidade é essencial se se pretende que uma teoria seja considerada científica” (Paul Kline, 1972)

Com esta introdução, pretendi, explícita ou implicitamente, dizer que:

  1. O bom andamento do processo terapêutico também depende, e em grande parte, da justeza dos conceitos teóricos em que assenta. Estes constituiriam um quadro referencial indispensável cuja função é permitir ao terapeuta andar à frente do processo e não a reboque, às voltas ou completamente perdido em relação ao mesmo.
  • A Psicanálise de onde derivam todos os modelos de orientação psicanalítica, como a AB ou a Org, tem sido, ao longo dos últimos cinquenta anos, submetida à prova da refutabilidade e viu serem confirmadas cientificamente muitas das suas teorias. Por conseguinte, uma parte importante do aparato teórico e conceptual da AB beneficia, por extensão, da sustentabilidade científica atribuída à psicanálise.
  • No que se refere às teorias e hipóteses específicas da AB tenho a impressão de que há ainda muito caminho a percorrer no sentido de destrinçarmos o que é válido, objectivo e confiável daquilo que o não é.
  • Pese à dificuldade de aplicar o método científico ao trabalho clínico, especificamente no nosso modelo de psicoterapia, devido à singularidade do paciente e à complexidade dos factores envolvidos no processo terapêutico, acredito que se podem dar passos frutuosos, utilizando as ferramentas mais adequadas à confirmação ou à refutação das teorias, afirmações, ou práticas que definem o nosso modelo.
  • Pretendo com a minha exposição ilustrar com dois conceitos muito representativos da AB, o groundig e o contacto, o que se pode fazer, no sentido de organizar o conhecimento, recorrendo para tal a conceitos paralelos investigados em áreas próximas da nossa, à criação de ferramentas susceptíveis de nos permitirem a recolha sistemática de dados, e à recompilação e análise de histórias clínicas.
  • O meu trabalho tem dois objectivos. Um objectivo principal que consiste em sublinhar a necessidade de o terapeuta possuir um referencial teórico para o seu trabalho e, simultaneamente, ilustrar a minha proposta com um quadro de referência conceptual em que o grounding e o contacto constituiriam dois pólos importantes do eixo terapêutico. Um outro objectivo, secundário, mas não menos importante, visa estimular, junto dos Analistas Bioenergéticos, o espírito científico na formulação de hipóteses, na recolha de dados, etc., susceptíveis de serem submetidos à prova da refutabilidade, no quadro da AB. 

2- SIGNIFICADO E FUNCIONALIDADE DOS CONCEITOS DE GROUNDING E DE CONTACTO

Apesar destes dois conceitos encerrarem aspectos comuns aos de outros modelos psicoterapêuticos é justo sublinhar que Lowen os dotou de significados assaz originais e de funcionalidades terapêuticas muito atractivas, à primeira vista.

O problema que se pode colocar em relação a estes como aliás a muitos outros conceitos constantes da obra de Lowen é o da prova da refutabilidade. Serão o grounding e o contacto conceitos claros, definidos e entendidos de uma mesma forma por todos os terapeutas? Os resultados esperados da utilização destas duas ferramentas são verificáveis e repetem-se sempre que são utilizadas?

As respostas a estas e a outras perguntas do mesmo género contribuiriam para a efectivação da prova da refutabilidade, para aumentar o nível de cientificidade da AB e, por conseguinte, para dar mais credibilidade e aceitabilidade ao modelo da AB, no campo da saúde mental.

Trabalhar no sentido de se provar o carácter científico da AB implica um esforço diversificado, tempo, discussão e contributos de vária ordem. Neste sentido o que me proponho fazer com esta exposição é dar um pequeno contributo assente nas seguintes ideias:

  • Focar-me em dois conceitos típicos da AB e lançar a hipótese de se poderem constituir como eixo do processo terapêutico
  • Esclarecer o conteúdo e a função dos dois conceitos, a partir da análise das obras do fundador da AB
  • Pesquisar na obra de outros autores, da família psicanalítica, conceitos próximos ou relacionados com os conceitos de grounding e de contacto, que, eventualmente, já tenham sido submetidos à prova da veracidade empírica.
  • Propor alguns instrumentos de trabalho no sentido de organizar a recolha de dados clínicos.
  • Ilustrar, com dois casos clínicos, a operacionalidade dos conceitos de grounding e de contacto em AB.

Comecemos por recordar o que é que Lowen entende por grounding e por contacto.

Comecemos pelo conceito de grounding. Lowen no seu primeiro livro, A Linguagem do Corpo (1958) aborda o conceito ou princípio de grounding como ele o denomina, a partir das experiências de descarga energética, pessoais ou observadas nos pacientes, em situações tais como o movimento descendente da energia ao longo da parte frontal do corpo, quando se faz uma inspiração profunda e tranquila, ou o movimento rítmico de descarga produzida, aquando do orgasmo sexual. “O movimento implica descarga de energia; para nos deslocarmos temos de descarregar energia que, por sua vez, encontra uma saída através do chão, entendido também, por extensão, como a sexualidade” pág.80. A energia que aqui se refere é considerada como uma energia fundamental denominada, aprioristicamente, por “bioenergia, e que se manifesta tanto nos fenómenos psíquicos como nos movimentos corporais”, pág.18.

Convém assinalar que, tanto em relação ao conceito de grounding como a muitos outros, Lowen faz um esforço entusiasta por interligá-los, no sentido de dar coerência às suas propostas. Este esforço é sobretudo visível ao longo da 1ª parte de A Linguagem do Corpo. Diga-se, de passagem, que o faz muitas vezes justapondo ideias suas, de Reich e de Freud não chegando, no entanto, a alcançar aquela síntese suprema e harmoniosa capaz de sustentar uma teoria única, cientificamente válida. Como este objectivo está ainda longe de se alcançar, contentemo-nos com o que há e que, como afirmam Fisher e Greenberg (1996) a propósito da Psicanálise de Freud, “se resume a um conjunto de mini teorias, que passam, umas, pelo escrutínio do tempo e da prova científica, e outras não”.

Vejamos, a propósito do conceito de grounding como Lowen o interliga com outros conceitos, dotando-o assim de uma enorme importância, digamos mesmo de uma centralidade relativamente aos objectivos de diagnóstico e psicoterapêuticos da AB. A carga e a descarga energéticas fundamentais, como sabemos, para a AB, estão intimamente ligadas ao grounding. Mas há mais. A prática sistemática do trabalho bioenergético deve começar pelo grounding (LC pag. 246). Na expressão da linguagem corporal, as pernas e os pés, que segundo Lowen, “são a base e o suporte da estrutura do ego” (LC, pág 99) são fundamentais para trabalhar o grounding; grounding que, recorde-se, significa estar enraizado e “estar enraizado significa estar em contacto com a realidade, sendo ambos conceitos sinónimos” (DC pag.50). Ainda sobre as pernas diga-se que, “para além das funções de suporte, equilíbrio e enraizamento, constituem a estrutura mais importante da função de movimentação do corpo” (LC pag 100) e como tal são também órgãos de descarga energética (LC pag.61).

Convém não mutilar o conceito de grounding associando-o exclusivamente à função de descarga. Todos sabemos que segundo o “princípio da oscilação pendular” não há descarga sem carga. Vejamos como se refere Lowen a este fenómeno. “ Metaforicamente todos os organismos se viram para o sol em busca de energia, o que é literalmente verdade no caso das plantas. Virar-se para cima, para fora, à procura de algo, faz parte da função de carga ou de acumular, de obter: oxigénio, alimentação, excitação. Nesta função está envolvida a parte superior do corpo. A descarga envolve a parte inferior, em direcção à terra. Antes da sua descarga, a energia intervém em duas funções vitais, a saber, o crescimento e o movimento. Só o excedente (maior no caso dos adultos, ao cessar o crescimento, do que no caso das crianças) é descarregado no solo, entendido também como sexualidade” (LC pag 80).

Na sua obra Depressão e o Corpo (1972) publicada 14 anos mais tarde que A Linguagem do Corpo Lowen afirma, com mais contundência ainda, que “grounding é um conceito bioenergético e não uma simples metáfora. Quando ligamos um aparelho eléctrico à terra estamos a criar um dispositivo para descarregar a energia. No ser humano, estar enraizado também serve para libertar ou descarregar a excitação do corpo. O excesso de energia de um organismo vivo está constantemente a ser descarregado através do movimento ou do aparelho sexual. São ambas funções da parte inferior do corpo. A parte superior está principalmente virada para a absorção de energia, em forma de alimento, oxigénio, estimulação sensorial e excitação. Estes dois processos de carga e descarga estão normalmente em equilíbrio. No corpo existe uma pulsação energética que desloca a sensibilidade para cima em direcção à cabeça em busca de energia, de excitação, e para baixo em direcção à parte inferior quando é necessária a descarga” (DC pag. 55).

 Para além de definir o conceito de grounding e de estabelecer a sua ligação com o funcionamento bioenergético do organismo humano, numa perspectiva, digamos, de fundamentação teórico-conceptual, Lowen refere-se em muitos outros momentos, directa ou indirectamente, à sua importância para o próprio processo terapêutico. Vejamos alguns exemplos.

“Quando uma pessoa adulta procura uma terapia analítica queixa-se de algum tipo de incapacidade para funcionar ao nível da realidade, sendo que a realidade adulta requer do indivíduo um funcionamento satisfatório, já seja no seu trabalho, nas relações sociais, ou na relação sexual” (LB pag.155). Recordemos que grounding e realidade são sinónimos.

“O processo de enraizamento de um indivíduo é um processo que o ajuda a conseguir a maturidade. Se a pessoa cresceu fisicamente, mas permaneceu imatura emocionalmente, é porque não aprendeu a estar de pé, a ser independente, devido a esperar ainda muito dos outros” (DB pág 57).

“A debilidade do movimento energético longitudinal constitui a base bioenergética da estrutura do carácter oral. Nem a cabeça nem os genitais, considerados as âncoras do ego estão fortemente carregados”.

Sendo objectivos centrais de qualquer psicoterapia, a maturidade do indivíduo e a capacidade para funcionar de forma autónoma, ao nível da sua realidade, creio justificar-se, plenamente, a minha proposta de considerar o grounding como um dos pólos do eixo terapêutico, dentro da lógica de funcionamento do modelo da AB.

O outro pólo deste eixo dentro da lógica do modelo seria, na minha opinião, o contacto. Vejamos então o que se entende por contacto em AB.

Embora na sua essência a natureza do contacto em AB seja a mesma, uma mais ampla compreensão do seu significado requer que o abordemos desde duas perspectivas diferentes, uma de ter contacto “having contact” (LB pág.30) e outra de estar em contacto, being in touch (DB pág.272).

Na primeira acepção falamos da pessoa que não se sente, que não tem consciência de uma parte do seu corpo como, por exemplo, as costas, que a maior parte das pessoas, realmente, não sente.

O movimento permite-nos sentir, ter contacto com essa parte do corpo que está fora da consciência; com facilidade, quando se trata de tensão muscular pontual, passageira causada por uma situação momentânea, de medo, por exemplo; com mais dificuldade, quando se trata de tensões inconscientes, com funções repressivas de conflitos recalcados.

Os exercícios bioenergéticos têm precisamente a função de aumentar a percepção do corpo, através do incremento do movimento de determinadas partes. E adquirem uma importância crucial ao nível das técnicas terapêuticas em AB quando nos confrontamos com os bloqueios musculares crónicos e seu significado na análise do carácter.

Sabemos que os bloqueios musculares crónicos retiram ao paciente a possibilidade de perceber, de sentir, de tal forma que não tem consciência de que determinada parte do seu sistema muscular, em certos aspectos, não funciona. A hipótese da AB é que a “musculatura é um mecanismo através do qual o superego exerce o seu controlo sobre o comportamento do indivíduo. Os músculos sujeitos às inibições do superego estão cronicamente contraídos, tensos e desprovidos de percepção”.

Tal como a nível psíquico, o superego impede determinados pensamentos de aceder à consciência, a nível somático o sistema muscular exerce essa mesma função repressiva. Os músculos cronicamente contraídos impedem determinados impulsos de aceder à superfície, ou seja à sua manifestação espontânea e assumida. A partir da análise das tensões do sistema muscular é possível determinar a natureza do superego e compreender as causas profundas dos conflitos inconscientes.

Restabelecer o contacto perdido com o próprio corpo e, através dele, aceder à análise do carácter do indivíduo para poder vencer e eliminar as defesas do ego é dizer em meia dúzia de palavras aquilo que leva normalmente anos a conseguir. Parece-me que não é demais, por isso, sublinhar uma vez mais o valor do contacto consigo próprio no processo terapêutico.

Deixem-me concluir esta parte da minha exposição com uma citação de Lowen: “Quando dizemos que uma pessoa não tem contacto com a realidade, queremos dizer que não tem contacto com a realidade do seu próprio existir, do seu próprio ser, que é em última instância o seu próprio corpo. E é através do seu corpo que experiencía o mundo e que lhe responde. Se a pessoa não tem contacto com o seu próprio corpo, não pode ter contacto com a realidade do mundo externo. Quanto mais vivacidade tem o corpo, mais vivamente percebe a realidade e mais activamente lhe responde. De aí que o primeiro passo no tratamento da depressão consista em ajudar o paciente a entrar em contacto com o seu próprio corpo” (DB, 1972, pág. 255).

Falemos agora do outro tipo de contacto, o contacto físico, beeing in touch. Dado tratar-se de um tema tão vasto e complexo, vamos abordar somente o contacto físico na relação terapêutica.

Tão importante em AB e tão rejeitado por outros modelos de psicoterapia, nomeadamente pela Psicanálise que evita ao máximo o contacto físico com o paciente, sendo este um tema tabu na técnica psicanalítica tradicional. O motivo desta posição prende-se, com a teoria de que há que evitar a insinuação de qualquer sentimento de carácter sexual entre analista e paciente. Segundo Lowen, tal atitude desencadeia precisamente o efeito contrário, ou seja, aumenta a transferência sexual, movendo-a para um espaço secreto, e fazendo com que o paciente tenha medo de se aproximar do terapeuta e de o tocar. Uma vez que é este precisamente o problema do paciente e a razão fundamental para procurar a terapia, o tabu contra o contacto acaba por prejudicar a intervenção terapêutica (DB, 1972, pág.272).

Dado que foi Lowen quem propôs o recurso ao contacto físico como adequado e mesmo muito valioso para o trabalho terapêutico, não tendo receio de derrubar o tabu psicanalítico, vamos continuar a explanar um pouco melhor o seu pensamento a este respeito.

“Todos os pacientes precisam de contacto físico, especialmente os pacientes deprimidos.” E continua: “Ao tocar o paciente despertamos nele os seus sentimentos. Mantendo o contacto, manifestamos-lhe a nossa simpatia e compreensão. E ao tocá-lo fisicamente de forma calorosa e sentida estamos a oferecer-lhe o nosso amor. Ocasionalmente, em situações de grande carência, pode, inclusive, ser necessário que o terapeuta tome o paciente nos braços ou que o abrace. Este abraço não expressa os mesmos sentimentos da mãe para com o seu filho, nem do amante para com a sua amada, mas sim o afecto que uma pessoa tem por outro ser humano e que não tem medo de tocar e de amar.”

Lowen continua depois dizendo que tão importante como ser tocado, é ser capaz de tocar o terapeuta ou outros colegas, em grupos terapêuticos. Só assim se podem analisar as respostas do paciente e compreender as suas ansiedades a respeito do contacto físico.

E vai, depois, mais longe concluindo que, no entanto o mais importante, verdadeiramente, para o paciente é recuperar o contacto consigo próprio, não através da intervenção de outra pessoa o que o tornaria dependente dessa outra pessoa, mas através dos seus próprios meios e a partir de dentro da sua essência, do seu self. Como é que isto se faz? Responder a esta pergunta implicaria descrever todos os procedimentos que utilizamos em AB. Não vou obviamente fazê-lo, mas acho que recordar algumas ideias de Lowen pode ajudar a sintetizar e a encerrar esta parte da minha exposição.

O terapeuta não pode dar ao paciente o amor que perdeu quando era criança, mas pode ajudá-lo a recuperar o seu corpo, através da análise do carácter e da utilização das técnicas terapêuticas da AB. Tal não diminuirá a dor, inclusive até poderá aumentá-la temporariamente, mas deixará de ser uma dor que ameace a integridade do indivíduo. Este, ao aceitar a perda, ficará livre para viver, plenamente, no presente. Em vez de tentar anular a perda procurando amor, vai canalizar os seus sentimentos, procurando ser amoroso, dedicado, afectuoso com os outros. Esta mudança de atitude é ditada não pela razão, mas sim pelas necessidades do corpo. O corpo procura o prazer e encontra o máximo prazer na expressão de si próprio, sendo um dos principais veículos da expressão pessoal, a manifestação de amor. Estar em contacto com o corpo significa estar em contacto com a necessidade de amar. E tudo começa, nestas circunstâncias, por amar-se a si próprio, amar o próprio corpo, cuidar de si com amor, e assim fazer, como dizem certos pacientes, o trabalho que as próprias mães foram incapazes de fazer com eles. Estes pacientes acabam, em muitos casos desejando ardentemente assumir a responsabilidade pelo seu próprio bem-estar. A partir daqui o indivíduo está em condições de se abrir aos outros, de partilhar, porque confia em si, porque está em contacto consigo.

Do livro Bioenergetics deLowen (1975, pág.175) vou retirar uma citação que nos fala da realidade do adulto, confrontado com uma existência isolada, angustiada ou com uma vida de inter relação, emocionalmente saudável.

Esta citação poderia servir de corolário à minha proposta de constituir os conceitos de grounding e de contacto como dois pólos fortes e mobilizadores do eixo em torno do qual gira o processo terapêutico.

Diz Lowen: “Aguentar-se nas pernas produz angústia, porque o indivíduo tem que se manter de pé sozinho. Enquanto adultos, todos nos mantemos de pé, é a realidade da nossa existência. Mas constato que a maioria das pessoas não gosta de aceitar essa realidade porque significa que estão sós. Atrás de uma fachada de independência, estes indivíduos agarram-se às relações e transformam-nas em fixação. Esta fixação destrói o valor da relação e o indivíduo tem medo de se deixar ir e de caminhar sozinho. Mas quando se deixa ir e caminha sozinho, descobre que não está só, que a relação foi melhorando e se tornou fonte de prazer para as duas partes. A dificuldade reside na transição, porque no intervalo entre o momento em que o indivíduo se deixa ir e aquele em que sente os pés assentes na terra firme, experimenta uma sensação de queda com toda a angústia que isso provoca.” E acrescenta: “As sensações gostosas e carinhosas da sexualidade pélvica conduzem ao abandono e evocam o medo de perder o controlo que é um aspecto do medo de cair. O problema que encontramos na terapia não é um problema de genitalidade, mas de sexualidade – o medo de se enternecer, de se comover, de se deixar ir, de se entregar ao fogo da paixão”.

No texto de Lowen está implícito o que a seguir explicito:

  1. Para poder estar em relação, o indivíduo adulto saudável deve, antes de mais nada, estar enraizado.
  2. A passagem do isolamento, da condição de estar só, para a situação de relação, implica uma transição difícil.
  3. A resolução dessa dificuldade de transição passa, por um lado, pela capacidade do indivíduo de se deixar ir e, por outro, por ser capaz de sentir os pés assentes em terra firme.
  4. A capacidade de dois indivíduos poderem estar simultaneamente sós e de se deixarem ir, transforma a relação numa fonte de prazer para os dois.

3-OS PROCESSOS DE SEPARAÇÃO/INDIVIDUAÇÃO E DE “ABASTECIMENTO DE CONTACTO” SÃO CONCEITOS DE MARGARET MAHLER QUE PODEM CONTRIBUIR PARA UMA MAIS AMPLA COMPREENSÃO DOS CONCEITOS DE GROUNDING E DE CONTACTO DA ANÁLISE BIOENERGÉTICA

Os conceitos de individuação e de abastecimento de contacto fazem parte de um vasto trabalho de investigação de Margareth Mahler e de uma ampla equipa de colaboradores, que começou em 1949 e se prolongou até 1975.

A obra de Mahler em que baseio as minhas considerações intitula-se The Pschological Birth of the Human Infant. O método de trabalho dos investigadores é definido pelos próprios como “assente num equilíbrio entre a observação psicanalítica flutuante e o desenho experimental preestabelecido.” Sublinho a preocupação dos autores por evitar a distorsão dos dados, as considerações subjectivas, o efeito de halo, (aspectos associados, geralmente, à recolha de dados em situação clínica), e por procurarem aproximar-se da prova da evidência empírica; sem perderem uma razoável flexibilidade clínica, dispõem o seu trabalho de modo a poderem encontrar repetidamente os mesmos fenómenos em situação mais ou menos estandardizada, e sujeita a um grau aceitável de validação consensual.

Apesar do enorme interesse da obra global de Mahler para o conhecimento do desenvolvimento infantil, uma área fundamental para qualquer psicoterapeuta, vou cingir-me exclusivamente àqueles aspectos que apresentam, na minha opinião, uma grande proximidade, relativamente aos conceitos de grounding e de contacto da AB.

Lowen fala destes numa perspectiva do psicoterapeuta que cria um quadro referencial teórico para as diversas patologias com que se depara na clínica. No entanto, e apesar do valioso trabalho que desenvolveu e da coerência que lhe pretende imprimir, fica-nos por vezes a impressão, como já salientei, mais atrás, que muitas da ideias de Lowen são mais intuitivas que científicas, podendo, na melhor das hipóteses, ser classificadas como Farrell (1951,1964) faz em relação à teoria psicanalítica, como uma “síntese empírica prematura, apresentada como antecipação da evidência”.

No sentido de dar mais coerência e solidez aos conceitos de grounding e de contacto em AB, entendi procurar na obra de Mahler as afinidades existentes com estes dois conceitos da AB. O que encontrei foi um trabalho científico, realizado directamente com crianças e cujos resultados podem ser utilizados, em muitos aspectos, no sentido de nos esclarecerem cabalmente sobre a construção do grounding e do contacto e suas patologias. Os dados objecto de estudo referem-se ao período que vai do nascimento aos 36 meses, período durante o qual tem lugar o que Mahler denomina por nascimento psicológico da criança ou processo de separação/individuação eque acontece logo a seguir ao nascimento biológico.

Para termos uma ideia global do processo de separação/individuação, observemos o Quadro 1, onde procurei estabelecer um certo paralelismo entre as várias fases do processo com os respectivos fenómenos que se vão sucedendo, e um suposto faseamento, que criei, da evolução do grounding e do contacto.

DESENVOLVI-MENTO
PSICOSEXUAL
FASE PREGENITAL FASE GENITAL…
GROUNDING PREGROUNDING 0 – 6 mesesGROUNDING
1ª FASE
6/7 – 16/17 meses
GROUNDING
2ª FASE
15 – 24 meses
GROUNDING
3ª FASE
24 – 36 meses
GROUNDING
GENITALIZADO
36 meses – 5/6 anos
– adolescência
CONTACTO CONTACTO
0 A 6 meses
CONTACTO
INTER-ACTIVO
PRÉ-VERBAL
CONTACTO
INTER-ACTIVO
VERBAL
CONTACTO
INTER-ACTIVO
CONSOLIDADO
CONTACTO
GENITALIZADO
PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO / SEPARAÇÃOPERCUSSORES DO PROCESSO1-DIFERENCIAÇÃO
 
6/7 a 9 meses   2- PRÁTICA DA LOCOMOÇÃO 6 / 7 a 17 meses
3- APROXIMAÇÃO 15 – 24 meses4-CONSOLIDAÇÃO DA INDIVIDUALIDADE E COMEÇO DA CONSTÂNCIA OBJECTAL E EMOCIONAL 24 – 36 meses
AUTISMO 1º mêsSIMBIOSE 2º a 5º mês
PROCESSOS
BIO-PSICOLÓGICOS
SUBJACENTES
Respostas instintivas, reflexos aos estímulos com origem no hipotalamo Procura de equilíbrio homeostático extra-interinoLibido predominantemente visceral sem discriminar entre dentro e fora, animado e inanimadoInterdependência sociobiologica entre o bebé e a mãeEstado de relação pré-objectalUnidade dual omnipotente dentro de um limite único comum (“membrana simbiótica”)Importância da fase simbiótica para o reforço da confiança básicaPrimeiras tentativas de separação corporal: deslizar para fora do colo da mãe, gatinhar, rebolar…Maturação das funções locomotoras parciaisLocomoção vertical livreDesenvolvimento do funcionamento autónomo e independente do deambulador e das funções autónomas do ego O bebé descobre o corpo da mãe através do tacto, da visão, do cheiro…Imagem corporal primitivaO tacto e o olfacto na formação dos limitesLibidinização do corpo da criançaOs objectos transiccionais (Winnicott)Maturidade físicaDesenvolvimento cognitivo e linguísticoConsciência de separaçãoIncremento da comunicação verbalInteracção social Importância da relação com o pai O descobrimento das diferenças anatómicas sexuais dá início à identidade sexual Grande necessidade de amor objectal Temor a perder o amor do objectoAnsiedade de separaçãoDisponibilidade emocional da mãe é crucialEstabilidade do sentimento de entidade (limites do ego)Consolidação da identidade sexualRepresentação permanente do objecto libidinalUnificação do objecto bom e do objecto mau numa representação total.Contacto libidinal repetidoA base da percepção do ego está ancorada nas duas extremidades: o cérebro e os genitaisQuando a função genital está firmemente instalada já não há fuga à realidadePrincípio da realidade assenta na oscilação pendular da bioenergia entre a cabeça e a parte inferiorConsolidação objectal emocionalAceitação / rejeição da masculinidade / feminidade por parte dos pais

Inicialmente, o recém-nascido passa pela chamada fase autística normal, onde predominam os processos fisiológicos, as respostas instintivas e a procura do equilíbrio homeostático do organismo, dentro do novo ambiente extra-uterino. O bebé não tem consciência da existência de um “agente maternante”, vive numa “situação de desorientação alucinatória primitiva” (Ferenczi, 1913) mas está já dotado de um equipamento fisiológico, organizado de acordo com as regras do sistema nervoso central, que lhe vai permitir um certo grau de responsividade aos estímulos externos como as atenções que recebe da mãe e que vão ajudar a criança a diferenciar, à medida que o tempo passa, as experiências prazerosas/boas das experiências penosas/más.

A partir do 2º mês começa a chamada fase simbiótica normal, em que o bebé constitui com a mãe um sistema omnipotente, uma unidade dual dentro de um limite unitário comum.

Mahler situa, nesta fase do processo evolutivo, a origem das psicoses infantis e dos estados borderline. A criança com defesas predominantemente autistas trata a mãe de carne e osso como se não existisse, ao passo que a criança com uma organização predominantemente simbiótica trata a mãe como se esta fizesse parte de si; não existe diferenciação entre eu e não-eu, há uma completa indefinição de limites.

Na situação de autismo normal e de simbiose normal, a criança não perde a capacidade de utilizar a mãe como um farol orientador no mundo da realidade, ao contrário do que sucede na patologia psicótica. Nas situações normais, o bebé começa por adquirir, a partir do 2º mês de vida, uma consciência, ainda que difusa, do objecto (leia-se mãe) que satisfaz as suas necessidades, objecto com o qual funciona numa unidade dual, com um limite comum entre dois indivíduos, fisicamente separados.

As experiências de contacto do corpo total, como do contacto visual com a mãe são cruciais na fase simbiótica. É a relação emocional estabelecida através do contacto materno que vai estimular o desenvolvimento do ego rudimentar.

O aparelho perceptivo sensorial da criança pequena mais o contacto simbiótico com uma mãe suficientemente boa (Winnicott) vão permitir:

  • A demarcação das representações do ego corporal dentro da matriz simbiótica, em consonância com as sequências de prazer – dor, tensão – relaxamento.
  • A formação do sentimento de si mesmo entorno do qual se vai formar o sentimento de identidade
  • A organização das experiências que vão permitir a consciência da separação do si mesmo do outro
  • A libidinização crescente do corpo da criança através do tacto e do contacto com a mãe

Quero sublinhar a importância destas duas primeiras fases do desenvolvimento da criança, porque é nesta altura que se expande ou se inibe a sua capacidade de contacto.

A qualidade do contacto da mãe com o bebe, nas fases de autismo e de simbiose, vai condicionar irremediavelmente a evolução da criança e permitir compreender muitos aspectos da patologia do carácter, no que concerne à capacidade de contacto do paciente nas suas relações adultas.

Destas duas primeiras fases do nascimento psicológico, se o meio ambiente é favorável, o bebé evolui naturalmente para as seguintes quatro fases do processo de separação – individuação, como num continuum, onde, por exemplo, podemos observar o início e a consolidação de um determinado fenómeno, ao longo de varias fases.

Não vou repetir os tópicos principais, que figuram no Quadro 1, vou simplesmente destacar alguns fenómenos típicos de cada fase do processo, e assinalar o paralelismo com os conceitos de grounding e de contacto da AB.

Diferenciação. Dá-se uma expansão para além da órbita simbiótica, com o aumento da actividade perceptiva da criança que a leva a explorar e a desfrutar do mundo externo, a separar a realidade interna da realidade externa, etc.

É nesta fase também que tem lugar a aparição daquilo que Winnicott (Playing and Reality, 1971, pág 16-20) denomina objectos transicionais e que se posicionam numa área intermédia, entre a realidade interna e a realidade externa e que ele caracteriza como área de experimentação, através da qual e do fenómeno da ilusão, a criança evolui da incapacidade para a capacidade crescente de reconhecer e de aceitar a realidade.

Estamos, como é fácil de perceber, na presença da etapa e dos fenómenos que explicam a aparição dos primeiros sinais daquilo que em AB chamamos grounding.

Nesta precisa altura, a criança tem consciência da separação corporal e da sua diferenciação relativamente à mãe e começa a desenvolver, de forma rudimentar, as funções do ego ao serviço da individuação, a saber, as primeiras tentativas de separação activa da mãe para explorar o mundo, a cognição, a memória, a prova da realidade, a consciência perceptiva, etc.

Prática da Locomoção. Esta fase sobrepõe-se em certos aspectos á fase de diferenciação. Caracteriza-se pelas tentativas da criança de se afastar fisicamente da mãe, inicialmente, arrastando-se, gatinhando, etc. e, finalmente, pela locomoção vertical livre. A criança amplia o seu descobrimento do mundo, porque dispõe de uma aparato locomotor que lhe permite deslocar-se livremente; está encantada, fica absorvida nas suas próprias actividades por longos períodos de tempo; regozija-se com as suas habilidades; “ao cambiar o seu plano de visão, para uma posição vertical, descobre perspectivas, prazeres e frustrações inesperados e cambiantes; faz um grande investimento narcísico nas suas próprias funções, no seu corpo, nos objectos e objectivos da sua realidade em expansão.”

A criança, ao afastar-se da mãe, sente um enorme prazer ao afirmar a sua individualidade e aumenta a sua auto estima. No entanto, para que tudo isto aconteça, a criança precisa do “contacto à distância” da mãe. A criança explora o mundo, mas, de tempos a tempos, regressa à mãe para “reabastecer-se emocionalmente”; precisa que a mãe esteja ali e a confirme, na sua exploração livre e autónoma do mundo.

Os vários padrões de interacção mãe – filho vão condicionar a evolução da criança nesta fase. Em síntese, a postura ideal deveria ser a da mãe presente, “emocionalmente disponível, de acordo com as necessidades da criança, capaz de lhe proporcionar o apoio maternal necessário para o desenvolvimento óptimo das funções autónomas do ego” (Mahler, pág 81).

Face a este cenário ideal, temos a realidade da enorme quantidade de pessoas adultas com défices adquiridos nesta fase tão importante para o desenvolvimento do grounding.

Aproximação. Na fase anterior, a criança deslumbrada com o seu descobrimento do mundo e com a afirmação da sua individualidade, deixava como em segundo lugar a necessidade de proximidade da mãe.

Nesta fase, em que aumenta a consciência de separação (devido à maturidade física e ao desenvolvimento cognitivo, que Piaget considera o início da inteligência representacional, que vai culminar no jogo simbólico e na linguagem), a criança parece experimentar uma necessidade maior de que a mãe comparta com ele todas as suas novas habilidades e descobrimentos. A criança tem um grande prazer em partilhar brinquedos e actividades com a mãe, com o pai e inclusive com outros adultos e com outras crianças.

Mas há um fenómeno novo que aparentemente e paradoxalmente vai no sentido contrário da independência e da autonomia ganhas na fase anterior. Trata-se de uma necessidade, expressa de forma mais intensa por umas crianças que por outras, da proximidade e da disponibilidade da mãe. A criança manifesta, nestas situações, sinais claros de ansiedade de separação e, por vezes, um grande temor a perder o amor do objecto, a criança oscila entre aprofundar e exercitar a fundo a sua autonomia e constatar, pela prova da realidade, que sofre ainda de muitas limitações. De aí a angústia de separação e o terror de “perder” repentinamente o sentimento de presença da mãe, no momento em que, com a crescente separação, esta se tinha transformado numa pessoa situada no mundo exterior, fora daquela união simbiótica dual caracterizada pela omnipotência.

A maturação saudável da criança deve muito à disponibilidade e ao compromisso emocional da mãe, mas há algo fundamental que, no dizer de Mahler constitui uma condição sine qua non para concluir, de forma saudável, o processo de individuação e que consiste por parte da mãe em deixar que o filho se separe e que inclusive lhe dê um suave empurrãozinho, como fazem as aves com os filhotes, para os estimular a ganhar a sua própria independência.

Consolidação da individualidade e começo da constância objectal emocional.

Nas palavras de Mahler as metas destas fases são: 1) alcançar uma individualidade definida e, em muitos aspectos vitalícia; 2) alcançar um certo grau de constância objectal.

Esclareçamos, no entanto, antes de avançarmos, um pormenor importante em relação a esta fase. Ao contrário das outras, esta tem um extremo aberto, ou seja que, apesar da estabilidade de certos padrões de comportamento, o processo evolutivo segue o seu curso de maturação.

Vejamos, com algum pormenor, as características mais salientes desta fase.

De acordo com os estudos de Piaget, de Mahler e de outros autores, é nesta fase que a criança atinge um elevado grau de maturação, tanto a nível cognitivo, como a nível afectivo e emocional.

Verifica-se o desabrochar de funções cognitivas complexas tais como a comunicação verbal, a fantasia e a prova da realidade; o jogo torna-se mais planeado e construtivo; graças à fantasia, a criança desempenha papéis e entra no jogo de como se; começa a desenvolver-se a noção de tempo e de espaço, etc.

Assistimos nesta fase também ao aparecimento de uma forte resistência activa às exigências dos adultos. Este negativismo, tal como o estabelecimento de representações mentais do ego, claramente separado das representações dos objectos, constitui uma base sólida para a formação do sentimento de auto identidade.

Assistimos ainda nesta fase ao surgimento de um fenómeno fundamental para a consolidação posterior da capacidade de auto estima e para a manutenção do equilíbrio emocional. Trata-se “da mãe interna ou representação intra psíquica da mãe que deve estar disponível para proporcionar conforto e segurança à criança, na ausência física da mãe”.

O funcionamento individual separado e a constância objectal libidinal constituem dois poderosos organizadores internos que vão permitir à criança enfrentar várias ameaças no seu desenvolvimento. A superação dessas ameaças ou a forma mais ou menos defensiva, mais ou menos adaptativa, que a criança adoptar vão definir as maneiras típicas de enfrentar os seus problemas individuais, ou seja vão contribuir para a formação do seu carácter, em sentido reichiano.

3.1 SUMÁRIO

Permitam-me agora sintetizar o processo de separação – individuação e de tirar algumas conclusões, alinhadas no sentido de proporcionar um reforço aos conceitos de grounding e de contacto em AB. Creio ser útil, porque a proposta de Lowen, por vezes, é vaga, intuitiva talvez, mas também romântica e, sobretudo carenciada de uma explicação do processo evolutivo infantil em que radicam os complexos elementos em que se alicerça o nascimento do grounding e do contacto.   

  • A formação da capacidade de contacto inicia-se antes da formação da capacidade de grounding, durante as fases de autismo normal e simbiose normal; assenta, respectivamente, no equilíbrio homeostático do organismo no novo ambiente extra-uterino e na capacidade da criança de investir a mãe como objecto que satisfaz as suas necessidades, dentro da unidade dual omnipotente simbiótica. Continua depois paralelamente à aquisição do grounding até ao fim do desenvolvimento libidinal.
  • A formação da capacidade de grounding inicia-se por volta dos 6/7 meses de idade com o aumento da consciência da separação do si – mesmo e do outro, e prolonga-se até à última fase do desenvolvimento libidinal ou nível genital, na terminologia da teoria clássica da Psicanálise, situada por volta da adolescência, ou até à 6ª fase dos estádios do homem de Erickson (1963) denominada juventude ou primavera da vida.
  • Verifica-se uma complementaridade na formação das capacidades de contacto e de grounding, ao longo do processo de separação-individuação.
  • Há um conjunto de fenómenos que aparecem no processo de separação/individuação e que fazem parte integrante do princípio de grounding. Estou a referir-me essencialmente aos seguintes:

 O ego corporal, as funções do ego tais como a cognição, a memória, a prova da realidade, a linguagem, o jogo simbólico etc., a locomoção vertical livre que facilita o acesso a um mundo em expansão, a negatividade, a autoconfiança, a auto estima, o sentimento estável de identidade e nomeadamente da identidade sexual, etc. Todos estes fenómenos contribuem para a consolidação preliminar da individualidade da criança ou seja para a consolidação do grounding ou enraizamento do indivíduo criança.

  • Com o desenvolvimento do contacto sucede outro tanto, ou seja que durante as várias fases surgem uma série de fenómenos subjacentes tais como: o contacto corporal total com a mãe, a libidinização do corpo da criança, a consciência do próprio corpo como diferenciado do da mãe, a gradual internalização da imagem da mãe, o contacto activo de aproximação/distanciamento, a disponibilidade emocional da mãe, a constância objectal, etc.

4 – AVALIAÇÃO INDIVIDUAL DO NÍVEL DE CONTACTO E DE GROUNDING

Cientificamente, esta avaliação poderia ser realizada recorrendo a um instrumento enquadrado na categoria dos questionários de personalidade. Que eu saiba este instrumento não existe ou ainda não existe. Até porque o desenho experimental e a construção de um tal instrumento implicam um enorme investimento financeiro e requerem o domínio de técnicas complexas pouco familiares aos psicoterapeutas.

Na ausência deste instrumento, vou propor a utilização de outros que preencham para já a necessidade de recolha e organização sistemática de informação pertinente para apoiar o desenvolvimento do processo terapêutico.

Vou seguir o método de construção de guiões focados em várias áreas relacionadas com os implícitos constructos de contacto e de grounding.

Grounding
Focar, indagar, explorar…Áreas, aspectos, comportamentos, manifestações, …
A- Ao nível do corpoTonicidade muscular generalizada ou focalizada: rigidez, flexibilidade, flacidez… Sistema perceptivo: os cinco sentidos e respectivo funcionamento – embotamento, vivacidade, expressão retraída, confiada, etc. Ego corporal: percepção do próprio corpo, das sensações; a respiração; a marcha (fugidia, ligada ao chão, rítmica, caótica); a voz (macia, polida, delicada, sufocada, feminina – nos homens, masculina – nas mulheres, agressiva, metálica, profunda, sólida…) Pés e pernas(segurança, insegurança, debilidade, força…) Linguagem: concisa, verborreica, realista, fantasiosa…
B- Ao nível da sexualidadeAnálise do carácter: estruturas pré genitais marcadas por impulsividade, acentuada ansiedade… (oral e masoquista); estruturas genitais marcadas pela rigidez e pela inflexibilidade física e emocional (fálico – narcísica ou histérica, compulsiva, passivo – feminina ou masculino – agressiva) Resolução do complexo de Édipo através da identificação com o pai do mesmo sexo e a renúncia ao pai do sexo oposto que será redecoberto no seu/sua objecto/parceira (a) sexual adulto (a) Relação pré – edípica, com os pais
Grounding
Focar, indagar, explorar…Áreas, aspectos, comportamentos, manifestações, …

C- Ao nível de desenvolvimento do ego              
A negatividade. Resistência activa às exigências das figuras de autoridade ou outras, associada à necessidade e ao desejo de autonomia, essencial para o desenvolvimento do sentimento de identidade. O pensamento do processo secundário que obedece às leis da gramática e da lógica formal, utiliza energia limitada e é governado pelo princípio da realidade. Os processos secundários desenvolvem-se ao mesmo tempo que o ego e que a adaptação ao mundo externo e têm uma íntima ligação com o pensamento verbal (Freud in Rycroft,1995) Sentimento de identidade: O sentimento que cada um tem de ser uma entidade contínua e distinta de todos os outros. Na opinião de Erikson muitos dos aspectos do desenvolvimento do ego podem ser formulados em termos de desenvolvimento do sentimento de identidade.
D- História integrada do pacienteSua vida actual e suportes encontrados nos elementos de análise anteriormente descritos que permitam definir o nível de grounding individual e específico do paciente.
Contacto
Focar, indagar, explorar…Áreas, aspectos, comportamentos, manifestações,
A – Linguagem do corpoTonicidade muscular: Rigidez, flexibilidade, flacidez… Manifestações de cada um destes tipos, sua intensidade e extensão Outras manifestações corporais: O olhar, a voz, a cor e o calor do corpo, a respiração… Relação pré edípica com a mãe: Disponibilidade emocional da mãe, abastecimento emocional ou libidinal, ansiedade de separação, imagem intrapsíquica da mãe
B – Desenvolvimento libidinal  Relação edípica: Pesquisar nas representações mentais a quantidade e a qualidade das experiências de contacto com os pais; o tipo de comunicação dos sentimentos: livre ou restrita; experiências de amor recebido dos pais; sentimentos dominantes que recorda da infância, adolescência ou em épocas específicas; identificação/desidentificação com os pais nas fases edípica e na adolescência
C – Padrões de apego construídos, na relação parental, em função da atenção, dos cuidados e da disponibilidade emocional dos pais e, sobretudo, da mãe nos primeiros anos (Mary Ainsworth)Apego seguro   Apego ansioso-resistente   Apego ansioso-evitativo
D – Doenças havidasPossíveis correlações com falhas de contacto/atenção ou com situações de engolfamento manifestado geralmente pela mãe após períodos de separação
E – História integrada do paciente    Sua vida actual e suportes encontrados nos elementos de análise anteriormente descritos que permitam definir o nível de contacto individual e específico do paciente.

5 – APRESENTAÇÃO DE UM PRIMEIRO CASO CLÍNICO COM O FOCUS NOS DOIS POLOS DE GROUNDING E DE CONTACTO DO PROCESSO TERAPÊUTICO

O exemplo que apresento a seguir ilustra o trabalho com um paciente com uma estrutura de carácter masoquista e cujos grounding e contacto se apresentam bloqueados ao nível do corpo (órgãos periféricos fracamente carregados) e ao nível da expressão do eu que é muito limitada. Na origem estão experiências dolorosas de humilhação, de rejeição, de repressão dos impulsos de raiva e cólera.

Manuel, 39 anos, quadro superior, veio à consulta queixando-se de fortes tensões, angústia, depressão, falta de confiança em si próprio e medo de fracassar.

Da estratégia terapêutica seguida com este paciente, vou focar apenas os elementos que se relacionam com os fenómenos de grounding e contacto.

Ao nível do corpo, observei desde o início, uma grande dificuldade em esticar os membros, assim como uma forte retenção da carga energética localizada na cintura. Os braços estão rígidos, como soldados aos ombros, as pernas contraídas ao nível das nádegas e das coxas, os pés retraídos, o dedo grande dos pés agarrado ao chão. A respiração está bloqueada e só recorrendo a exercícios muito intensos é possível libertá-la um pouco. O recurso ao trabalho de grounding e de contacto proporcionou-nos resultados bastante surpreendentes.

Após um longo período de descompressão do corpo, de descarga energética, de expressão do seu mal-estar sempre que tomava consciência da sua agressividade, Manuel conseguiu pouco a pouco compreender que tinha medo de ser rejeitado caso se afirmasse, de ser abandonado, se mostrasse sentimentos negativos. Compreendeu finalmente como estava pouco “grounded”, como era pouco autónomo, pouco capaz de estar só, amedrontado com a hipótese de vir a perder o amor dos outros ou a sua consideração.

A fixação no amor de uma mãe sacrificada mas dominadora, zelosa mas sufocante, ao lado de um pai passivo e distante, tal é o quadro familiar de que Manuel foi pouco a pouco tomando consciência no decurso da terapia, com muita pena e sofrimento. Foi no entanto a tomada de consciência e, sobretudo, a expressão desse sofrimento que libertou a sua energia bloqueada e melhorou o seu contacto, a sua capacidadepara partilhar afectos sem receio de ser sufocado pela relação, e a sua capacidade para estabelecer relações mais livres.

Gostaria de terminar esta exposição clínica com uma breve descrição de um exercício proposto no trabalho de contacto com o Manuel.

Um dia, na sequência das suas palavras (vagas referências à mãe que ficou sozinha após a morte do pai), pedi-lhe que se deitasse no divã e dei-lhe um rolo forrado de lã sugerindo-lhe que o abraçasse, mantendo os olhos fechados. A ideia consistia em aproximar-se da mãe, ficar em contacto com ela, falar-lhe.

Há mais de um ano já, que o Manuel estava a fazer terapia, e os focos masoquistas estavam em vias de resolução. Tratava-se, com este exercício, de testar o nível de restauração do “contacto” de Manuel. Experimentou uma grande tristeza, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, e era perceptível o seu alívio através de uma respiração profunda e tranquila e um corpo bastante descontraído. Ao mesmo tempo, ia-me dizendo como lhe era ainda difícil aproximar-se da mãe, mas foi finalmente capaz de exprimir em relação a ela sentimentos múltiplos de raiva, amor e respeito. (Rever o conceito de constância emocional objectal mais acima).

Manuel dizia-me muitas vezes que se sentia mais com os pés na terra, que tinha mais energia, que fazia projectos e se sentia mais confiante. Quando dizia isto constatava que o seu sorriso estava mais aberto e espontâneo, o olhar mais vivo. O seu corpo apresentava uma maior mobilidade, a respiração era mais profunda.

6 – EXERCÍCIOS BIOENERGÉTICOS DE GROUNDING E CONTACTO

Para permitir a qualquer pessoa experimentar os fenómenos bioenergéticos de grounding e de contacto, elaborei uma sequência de exercícios que passo a descrever.

Estes exercícios foram experimentados com diversos pacientes que expressaram os seus fantasmas, sensações ou sentimentos associados com cada um destes exercícios. Na minha descrição dos exercícios vou anotar os comentários de alguns desses pacientes a título ilustrativo.

Cada pessoa deverá, depois de concluída a série de exercícios, exprimir aquilo que sentiu, as imagens e os fantasmas que lhe vieram ao espírito.

Fase 1

GROUNDING: a consciência de estar só.

O paciente deve estar de pé com os joelhos ligeiramente flectidos, os olhos fechados, os braços envolvendo o corpo e respirando profundamente (fig. 2).

O objectivo do exercício é tornar o paciente mais consciente da realidade de estar só, sem apoio exterior: são unicamente as suas pernas que o suportam e o mantêm em contacto com o chão.

O exercício provoca sensações, sentimentos, fantasias de que o paciente deverá tomar consciência e que procurará integrar. 

No intuito de aumentar a consciência de si próprio é pedido ao paciente que encaminhe a vibração para as pernas com os joelhos ligeiramente flectidos, para empurrar o peso do corpo para baixo, utilizando, na medida do possível, a pélvis no exercício. Ao inspirar, deixar a zona pélvica oscilar ligeiramente para trás, e ao expirar deixá-la oscilar para a frente. 

O exercício dura entre 2 e 4 minutos. Se necessário poderá repetir-se o exercício. O paciente faz uma breve pausa, após a qual lhe será pedido que sacuda os braços e as pernas.

Eis o que alguns pacientes exprimiram no fim do exercício:

  • Sinto-me com mais energia
  • Tenho mais confiança em mim
  • Sinto uma grande rigidez e cãibras na barriga das pernas.
  • Sinto as pernas a tremer e tenho medo de cair.


Fase 2

EXTENSÃO: tentar crescer, tomar consciência do mundo externo

Nesta fase o paciente põe-se outra vez de pé com os joelhos ligeiramente flectidos, os olhos fechados, os braços em volta do corpo e respirando profundamente. De certa forma, o efeito bioenergético da primeira fase mantém-se, o paciente está mais em contacto consigo próprio e tem uma maior consciência dos seus sentimentos e do seu corpo.

Nesta situação é-lhe pedido, sempre mantendo os olhos fechados, que afaste os braços do corpo até que fiquem totalmente abertos (fig. 3). Deverá conservar esta posição durante alguns instantes, mantendo-se atento às sensações e sentimentos que subsistem. O exercício dura aproximadamente 2 a 4 minutos. Poderá repetir-se se necessário.

Eis o que alguns pacientes exprimiram no fim do exercício 2:

  • Tive a sensação que crescia.
  • Senti-me como uma folha a abrir-se ao sol.
  • Sensação de uma certa excitação no momento em que afastava os braços do peito.

Fase 3

CONTACTO: comunicação, relação mútua

Nesta fase da série de exercícios, (em grupo ou em terapia individual) os dois indivíduos de joelhos ligeiramente flectidos, colocam-se em frente um do outro, à distância de três ou quatro metros (fig. 4). Em princípio, o efeito das duas fases precedentes mantém-se.

Ambos deverão ter os olhos abertos, respirar profundamente e manter-se em contacto através do olhar.

Ficam um momento nesta posição tentando perceber, sentir, o que se passa com cada um.

Aproximam-se um pouco, até ficarem a cerca de um metro um do outro.

Tomam consciência da situação e, sobretudo, mantêm-se atentos e conscientes do que cada um sente no seu corpo. Para conseguir isto, sugiro que fechem os olhos durante breves instantes mantendo os braços abertos. Ao abrir os olhos deverão entrar em contacto através do olhar mantendo os braços estendidos.

Este é um momento especial. Várias coisas podem acontecer: ou o par se abraça naturalmente, ou ambos têm medo e mantêm-se à distância. Poderão experimentar também sentimentos opostos ou diferentes: um dos dois desejar abraçar ou ser abraçado e o outro desejar exactamente o contrário, mantendo-se afastado.

É importante que cada um se sinta livre e reciprocamente respeitado na realização do exercício. É a única forma de tirar valor terapêutico do trabalho efectuado.

Para finalizar a sequência de exercícios ambos devem trocar impressões.

Eis o que alguns pacientes exprimiram no fim do exercício:

  • Visualizei uma cena de dois amigos que se encontram após uma longa separação.
  • Foi muito bom. Para mim foi o abraço que o meu pai nunca me deu.
  • Senti-me paralisada, em pânico, e não fui capaz de avançar para nos abraçarmos.

7 – APRESENTAÇÃO DE UM SEGUNDO CASO CLÍNICO COM O FOCUS NOS DOIS POLOS DE GROUNDING E DE CONTACTO DO PROCESSO TERAPÊUTICO

Vou chamar Rita à paciente que se sentiu paralisada face ao seu par no exercício 3 (Fig. 4). É uma mulher de cerca de 35 anos, com uma vida profissional bem sucedida. Vive sozinha, nunca casou nem conta fazê-lo por enquanto. Tem uma estrutura de carácter complexa, como tantos outros pacientes, mas notam-se nela numerosos traços de carácter esquizóide com alguns elementos paranóides, assim como certos traços de carácter oral. O corpo tem um aspecto sólido, o que não é frequente no carácter esquizóide, tendo como principais zonas de tensão a base do crânio e a região do diafragma. Quando os exercícios combinam o grounding com uma respiração profunda, a Rita sente muitas vezes a cabeça isolada do resto do corpo, ou então percepciona de maneira diferente a parte direita e a parte esquerda das pernas e da bacia.

Na sua vida social, a Rita é uma pessoa muito isolada. Tem relações muito superficiais com algumas colegas de trabalho e considera muito complicada a hipótese de iniciar uma relação íntima com um homem. Tem medo de se tornar dependente se começar a partilhar as suas emoções.

Rita foi seguida em terapia durante cerca de 4 anos. O seu percurso passou por vários períodos. Limitando-me aqui aos aspectos relativos ao grounding e contacto, resumirei em três etapas as aquisições mais significativas:

A – Um período inicial de descoberta do corpo, de percepção das tensões na base do crânio que a impedem de respirar à vontade e de soltar a voz; tensões na região diafragmática, que a impedem de entrar em contacto com o abdómen e a bacia, ao mesmo tempo que a impedem de sentir os seus impulsos instintivos, como a raiva, a ternura, a cólera, etc. Ao longo deste período, é impressionante constatar como a Rita vive num mundo à parte, isolada, e com uma fraca percepção do seu corpo e das sensações. O pouco contacto com a realidade, a tendência para sonhar (“espero que as coisas aconteçam como por magia”) denunciam um défice de grounding. Para aumentar o seu contacto com a realidade, fazemos exercícios de pé, para carregar o corpo e intensificar o seu contacto com o chão, assim como exercícios de respiração profunda, de expressão da voz, etc.

Este trabalho corporal leva-a pouco a pouco a falar da sua infância, da rejeição precoce de uma mãe que se sentia ela própria abandonada, da rejeição da Rita à comida, dos vómitos frequentes que obrigavam os pais a tratá-la de misteriosos problemas de estômago.

B – Num segundo período verificam-se sensíveis progressos na Rita. Está mais em contacto com ela própria e toma consciência do significado dos seus bloqueios físicos; começam a aparecer emoções e, por vezes, também um grande sofrimento. As suas recordações, sonhos abundantes e tomadas de consciência do corpo são instrumentos que nos ajudam a alargar o nosso campo de trabalho nesta fase do processo. Vou transmitir aqui apenas alguns dos conceitos mais significativos.

Rita fala do seu medo de morrer, o que lhe traz à memória a recordação de que a mãe receava a sua morte quando a Rita tinha problemas de estômago. Mas lembra-se também, de súbito, da mãe ter exclamado um dia, em reacção a um momento de rebeldia adolescente, “Porque é que não te deixei morrer?”. Os soluços que se seguem fazem estremecer todo o seu corpo, abrindo caminho para uma respiração liberta. Rita apercebe-se então dos seus sentimentos contidos de pena e de raiva. Encorajo a expressão desta última e a Rita concorda, deitada no divã e batendo energicamente as pernas e os braços enquanto grita: “Deixa-me!”

Durante este período, sofreu dores de cabeça, manifestação de um conflito entre a vontade de se conter e de se exprimir. Apercebeu-se igualmente do medo que tinha de ser rejeitada quando sentia vontade de expressar as suas birras.

Através de um sonho, a Rita tomou um dia consciência do seu lado diabólico, que associou à sua capacidade criativa. “É qualquer coisa que eu sinto que tenho de deitar cá para fora, mas que estou sempre a controlar. Por outro lado, faz-me pensar na minha mãe, que me terá rogado uma praga e por isso não posso ser diabólica para não lhe dar razão.” A vontade de se afirmar continua prisioneira do fantasma poderoso da mãe.

Rita teve durante este período recordações daquilo a que ela chama a “brejeirice” da mãe, relacionadas com o momento da toilette, durante a qual a mãe fazia brincadeiras vividas pela Rita como abuso sexual. O pai participava também “rindo e olhando”.

A certa altura deste relato, propus à Rita, sentada à minha frente, que me dissesse: “Era capaz de te matar!”, e que o repetisse várias vezes. Começou por não sentir nada, e depois foi tomando consciência de que tinha a nuca gelada e os pés dormentes.

Estendida no divã, deixou-se ficar silenciosa; ofereci-me para lhe massajar a nuca a fim de facilitar a respiração e a libertação da voz. Aceitou e começou a falar da sua repulsa pelo contacto, da mãe omnipresente no seu espírito, do pai e do abuso sexual. Tudo isto lhe permitiu sentir e exprimir muita tristeza, muito desgosto e medo de ser rejeitada.

Relato-vos este momento particular pois permite-me pôr em evidência as razões pelas quais Rita tinha um grounding reduzido e um contacto empobrecido. Tinha tido necessidade de fugir à realidade para sobreviver, para escapar à rejeição, e foi assim que se isolou.

Compreende-se melhor agora a reacção da Rita, relatada no fim do exercício 3, quando ela diz “Senti-me paralisada”.

Todas as outras afirmações dariam lugar a outros tantos relatos terapêuticos que não representam mais do que a ponta do iceberg da história de cada um.

C – O período final do processo da Rita serve-nos para demonstrar a importância do grounding e do contacto na restauração da saúde emocional dos pacientes.

Para ilustrar esta fase, vou referir um exercício bioenergético em que a Rita entre outras coisas se queixava de dores de cabeça. O psicoterapeuta segura Rita pelas mãos, mantendo-se ambos de pé e, a certa altura o psicoterapeuta solta a paciente, deixando-a cair sobre almofadas devidamente protegida de qualquer perigo físico. Na fase de elaboração da experiência corporal, a Rita associou-a a uma recordação da infância: “Alguém da minha família me pegava ao colo e logo a seguir ameaçava deixar-me cair. É exactamente aquilo que eu sinto na terapia, como se me segurassem nos braços quando cá venho, para depois me deixarem cair no fim da sessão. Não gosto disso.” E Rita continuava: “É como se tivesse durante o tempo todo de segurar a cabeça face a essa ameaça de queda quando tenho de me ir embora no fim da sessão. Tenho consciência disso e custa-me a aceitar.” Rita descrevia uma sensação física de suspensão pelos ombros e pela cabeça, sensação que não lhe pertencia, que seria de outra pessoa. No fim, continuando o processo de elaboração da experiência corporal, as dores de cabeça desapareceram.

Estes “insights” que a Rita elaborou durante várias sessões desta fase de terapia ajudaram-na a relacionar a sua dificuldade em partilhar, em se aproximar, em pedir por medo de ser rejeitada, aos traumas da sua infância. Por outro lado, o seu sentimento de dependência em relação à terapia e ao terapeuta começou a incomodá-la, a entristecê-la e a irritá-la. Pude então demonstrar-lhe a importância dessas experiências como ponto de partida para conquistar, de forma apoiada, a sua autonomia, sendo o Eu o centro da expressão dos seus afectos.

A terapia ajudou-a a libertar a sua energia, a reencontrar o seu grounding e a sua capacidade para sentir desejo de se aproximar dos outros, sentir emoções e, finalmente, desenvolver a sua capacidade de contacto.

A terapia da Rita chegou ao fim pouco tempo depois. Actualmente, leva uma vida que a satisfaz bastante e, sobretudo, está mais aberta e mais confiante nas suas relações e no seu modo de vida.

8 – CONCLUSÃO

O tema central do trabalho gira à volta dos conceitos bioenergéticos de grounding e de contacto, da sua singularidade e da possibilidade de se constituírem como referencial teórico do processo terapêutico.

Lateralmente, e no sentido de reforçar e de validar os conceitos de grounding e de contacto procuram-se ideias e experiências em áreas e modelos próximos da AB.

Finalmente, faz-se uma proposta de investigação no sentido de operacionalizar cientificamente os conceitos de grounding e de contacto.

Pode em síntese, resumir-se em 4 pontos o trabalho apresentado:

  1. É fundamental que o trabalho do psicoterapeuta assente num quadro referencial teórico que lhe permita andar à frente do processo e não a reboque, às voltas ou completamente perdido em relação ao mesmo.
  • Os conceitos de grounding e de contacto, claramente distintivos, da Análise Bioenergética, são passíveis de ser constituídos como pólos do eixo terapêutico, pela força aglutinadora que possuem, em relação a todos os elementos que integram o processo terapêutico.
  • O quadro referencial teórico da Análise Bioenergética assenta em grande parte na Psicanálise freudina, na Orgonoterapia de W. Reich, nas teorias de Lowen, noutras teorias de modelos de orientação analítica e, inclusive, de orientação cognitivista. Mas como a ciência é um processo contínuo e aberto, o quadro referencial do psicoterapeuta poderá enriquecer-se permanentemente.

     Dos actuais modelos teóricos, incluída a AB, pode dizer-se o que   Fisher e Greenberg dizem, a propósito da Psicanálise de Freud, que se resume a “um conjunto de mini teorias que passam ou passarão umas pelo escrutínio do tempo e da prova científica, e outras não”.

  • Idealmente, seria interessante, para o promoção científica da AB, que se construísse um questionário de personalidade capaz de avaliar o nível de grounding e de contacto, de qualquer paciente, no início, no meio e no fim do processo terapêutico. Deixo a proposta, para investigações futuras.

9 – BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

AINSWORTH, M. (1978) Patterns of Attachment: Assessed in the Strange Situation and at Home. Hillsdale, N.J., Lawrence Erlbaum.

BOWLBY, J. (1988) A Secure Base. New York, Basic Books.

FISHER, S.; GREENBERG, R. Freud (1996) Scientifically Reappraised. New York, John Willey.

KLINE, P. (1972) Fact and Fantasy in Freudian Theory. London, Methuen.

LOWEN, A. (1971) The Language of the Body. New York, Macmillan Publishing .

LOWEN, A. (1993) Depression and the Body. New York, Arkana: Penguin Books.

LOWEN. A. (1979) La Bio-Energie. Paris, Tchou.

MAHLER, M.; PINE, F.; BERGMAN, A. (1977) El Nascimiento Psicológico del Infante Humano. Buenos Aires, Marymar.

RYCROFT, CH. (1995) A Critical Dictionary of Psychoanalysis. London, Penguin Books.

WINNICOTT, D.W. (2005) Playing and Reality. London, New York, Routledge

Classics.

WINNICOTT, D.W. (2001) The Family and Individual Development. London, New York, Routledge Classics.